ALVORADA
Capítulo IV "Sancta Marīa"
A fé permitiu a Deus açambarcar esta região e as suas gentes, galvanizadas em temor a Si, quem ousaria afrontar Deus Nosso Senhor? Que ser da ralé humana se atreveria a querer tomar o Seu papel? A Ordem, mandatada pelo próprio Cristo, este por sua vez de Deus Pai Todo Poderoso, existe para servir esse desígnio, manter a as criaturas de Deus na ordem, na fé, na sua real condição de servidores e tementes a Ele.
Quem se atreveria a contestar o poder régio, quase tão sagrado como o Sacro Reino do Senhor? A diferença entre a realeza secular e a realeza divina reside que a primeira não estende por toda a eternidade os castigos dos que se afastam, o Rei é efémero, Deus é eterno. Não sei se o Senhor o sabe, mas sabe-lo bem o Rei. Entre este colocar de assuntos sai à vista que a realeza pode se entregar na santa cruzada de perpetuar o Seu desígnio na terra assegurando para si a absolvição perpétua e a manutenção da coroa, enfrentar o Rei é, nesta singular condição, afrontar de igual modo o Criador.
O Rei finge que não reina, a Ordem finge que o faz, se ela reinar nos ditames que não desagradem à coroa, sua majestade se há-de aprouver a manutenção da ordem e a acalmia das almas, para as duas é um bom negócio, privilégios para todos, mordomias bidireccionais.
Naquele inverno o braço secular haveria de demonstrar perante os horrores que hoje nos contemplariam o vigor desse trato sagrado. Por todos os cantos da cidade esvoaça um cheiro forte a madeira nova acabada de serrar e montada meticulosamente, calculadamente, sem falhas para agradar a quem de direito e impressionar a todos quantos os que queiram ou não assistir ao piedoso ritual.
Subitamente, sobre um sol esplendoroso cujos raios eram reflectidos pelo límpido azul do rio que corre sobranceiro, ouvem-se vocalizações que ecoam como sons pedindo clemência, sons que mesmo não apregoando, suplicam a sorte que sabem adivinhar-se, o populacho expectante ajunta-se ainda mais diante do enorme cadafalso, este por sua vez diante do enorme convento, não resistem as gentes em assistir ao macabro espectáculo, ninguém resiste em assistir à miséria, ao sofrimento, à humilhação, à provação de todos os mais elementares direitos que a um seu semelhante lhe devam ser reconhecidos. Adoram, fazem a festa! E ao longe a corte que supostamente aqui não manda assiste, não partilha dos mesmos urros da multidão mas não esconde a vontade de ver tal assombro. À corte do reino não interessam os motivos, interessa saber que os urros vão contra tão vis criaturas que poderiam a qualquer momento colocar em causa a sua própria existência, o mesmo passa na mente do Cardeal de Sanctha Marīa, de sua eminência o Grão-Mestre da Ordem, os seus administradores, freires e toda a cúpula da Ordem, primados na cidade.
A ordem é tão grande como demonstra a enormidade do seu edifício sede, composta de freires de clausura, freires não enclausurados, frades, freiras, cavaleiros religiosos e não só, leigos que dão o seu corpo à causa da Ordem que, podemos até dizer, é a sua também e a Inquisição, ela sim responsável pelo temor generalizado, a ela se deve a fé extrema, a ela se deve a sobrevivência da Ordem e do próprio Rei, enquanto a Inquisição existir se abafarão as vozes contra a Igreja e por arrastamento ao próprio Rei, daí o seu interesse.
Já vão entrando os juízes do tribunal secular, a Igreja é como Pilatus, condena mas não executa, faz relaxar ao braço secular, o tribunal do Santo Ofício já proferiu a sentença num acto de formosa generosidade para com o tribunal secular que apenas a terá que aplicar como manda o cânone apropriado, vai o juiz subindo a escadaria monumental do cadafalso, centrada e com a aparência de que teria sido imaculadamente esculpida no próprio cadafalso como sinal de singular abnegação se tivesse sido colocada para facilitar as pobres almas no seu percurso em direcção à salvação eterna.
Hoje o dia é de festa, realiza-se o primeiro Auto-da-Fé do novíssimo convento, conviríamos que deva ser um acontecimento digno de registo para toda a posterioridade, como tal, a lista dos relaxados é particularmente longa, circulam rumores de que inocentes estão no rol e até individualidades destacadas da alta nobreza e do alto clero estarão prestes a prestar contas no purgatório. No cadafalso vêm-se para cima de cinquenta estruturas de enforcamento, cinco rodas, outras tantas cruzes em forma de X, três suportes onde rolarão as cabeças dos humilhados, um machado de carrasco e cerca de cem mastros onde ser perfilarão os mais perigosos infractores das leis de Cristo.
Sustentam o cadafalso longas fileiras de estacaria e, no espaço vazio que medeia o chão da praça e o soalho do cadafalso, se aprumam molhes de lenha e palha.
Ao lado do juiz perfila-se agora o Grão-mestre da Ordem, o Governador-geral e o Inquisidor-mor, Declaro aberta a sessão deste Auto-da-Fé, Declara o Grão-mestre, após as palavras mortíferas que lhe precedem, o Governador-geral, Achando-se na real graça de sua majestade, que em mim confia a supervisão deste acto, declaro o presente Auto-da-Fé revestido na legalidade da Coroa. O Rei acena ao longe. Inicia-se o espectáculo, a multidão reage com euforia, porém, pela primeira vez, com aturdida percepção do que está por vir.
Os gritos dos condenados são abafados pelos carrascos, seguem em procissão os primeiros em carruagens que param defronte da escadaria, o inquisidor-mor lê a sentença e cabe ao juiz, como guardião do poder temporal a tarefa de apenas confirmar a sentença previamente adjudicada.
Os primeiros a serem relaxados tomam posição sobre as forcas, escorrem-lhe lágrimas, uns rezam, outros clamam por justiça ou por clemência, vê-se-lhes no rosto a aflição das cenas que nos seus cérebros já lhe passaram vezes sem conta, atrozes quadros de dor que fazem palpitar em acelerado compasso o coração. O sofrimento que os espera é real e virá em pouco tempo. É difícil imaginar o que pensaram enquanto esperavam, uns contemplam o seu passado, outros se apressam em pedir a absolvição dos seus pecados para que possam partir em paz, num gesto que os faça entrar em graça no paraíso chefiado por quem em seu nome aqui na terra os seus pares acabam de os condenar.
À aflição soma-se-lhes o temor e a muitos a humilhação estampada nos seus rostos, ouve-se quem peça que seja rápido, outros que juram que a justiça divina virá culpar quem lhes fez passar por tamanho penar.
Um por um, são lidos os seus crimes e colocados a jeito, cada um em sua forca, para depois de lida a última sentença e colocado o último condenado se soltarem os dependurados, não têm direito a última palavra, assim é o entendimento de que o réu condenado por delito contra Deus não merece tal clemência.
A multidão grita entusiasmada, mas o grito dos aflitos abafa todos quanto ali gritem, o som das cordas que apertam com vil eficácia as pobres gargantas faz o estômago da assistência se enrolar num misto de estupefacção do que o homem pode fazer ao seu semelhante, ainda assim vibram freneticamente, Morte aos hereges! Exclamam em voz alta como que quisessem que Deus os ouvisse.
De seguida, ainda o último dos resistentes da força exala o seu último suspiro e já o clero inicia uma ronda de orações pedindo a Deus que salve as almas que acabam de partir, seguem-se recitações da bíblia, novas rezas e se preparam para a nova fornalha de condenados, tudo isto leva tempo, muito tempo, mas é um espectáculo que se quer demorado, para encravar na mente da população que não se brinca com a fé.
Chegam os padecentes seguintes, nem parece que já partiram cinco dezenas, mas o ânimo parece o mesmo, o Auto prossegue num crescendo de euforia e ao mesmo tempo de terror, porém não se atingiu o clímax.
Os carrascos já estão a afiar o instrumento do finamento, os machados reluzem. Ouve-se um espanto generalizado, incrédulo, o populacho vê subir nos degraus da nova vida, três ilustres pessoas, outrora dignas de vénias, sobem o Duque e a Duquesa de Sanctha Marīa, culpados de heresia, nome pomposo para o crime de atentar contra a soberania divina da Ordem, e ainda um ilustre Padre que até já tinha ocupado um cargo de grande destaque na Ordem, antes de cair em desgraça no seio da cúpula por se lhes opor ao que precisamente viria a ser a sua morte, alertara os seus pares que Cristo não quer que a sua Igreja proceda de forma firme na execução dos condenados, isto é claramente querer pretender-se a ser a voz de Cristo, inaceitável e acima de tudo perigoso para o jogo de poder interno da Ordem.
Posicionam-se o Padre e o Duque, altivos nas suas formas públicas apesar do fatídico destino que ali os espera, a Duquesa, ainda assim, deixando verter algumas lágrimas. Minha Senhora, nada temas porque Deus Nosso Senhor nos acolherá e castigará a todos quantos nos fizerem passar por tamanha tormenta. São palavras de grande altiveza do Senhor Duque que, mesmo com o clima de euforia, consegue silenciar por alguns instantes o populacho. Domine memento mei, sirvo a Cristo e a Deus e a nada mais, um dia havereis de subir ao julgamento divino diante de Deus Nosso Senhor e sereis condenados às chamas do inferno até ao fim da eternidade, in hoc signo vinces! Proféticas palavras do Padre que, essas sim, calaram por longo tempo a multidão e mesmo antes que a mesma se recompusesse, por uma questão de cortesia, o machado reluzente levantado pelos braços do carrasco desfere um golpe sobre o pescoço da Duquesa fazendo-a num segundo separar sua cabeça do seu corpo o que de seguida produz um jorro de sangue que se projecta com tamanha vivacidade que as mais potentes fontes do reino. Sem dúvida um cenário mais horrorífico, porém, a multidão, ainda embevecida do discurso do Padre, reage quase sem um pio, o Duque nada diz mantendo-se em respeitoso silêncio, é o segundo, aí a multidão começa lentamente a retornar ao transe inicial. E vos prometo… Cai no pescoço do Padre o seu fim, o machado corta-lhe não só a cabeça como a oração enfática que tentara produzir, o povo silencia-se novamente num misto de choque e de dúvida quanto à promessa que o Padre estava prestes a proferir. De repente uma sensação de culpa esbatera-se nas pessoas, o silêncio sepulcral era contrário ao pretendido. De facto este segundo acto não estaria a correr como o desejado e, pela primeira vez, à Ordem soavam os sinos a rebate, cada cabeça sua sentença, mas naquele momento todas as cabeças estavam sincronizadas, este acto estava a ser mais um perigo para eles próprios do que a contribuir para a solidez da sua autoridade.
Sem mais delongas apressa-se o clero a recitar nova pauta de rezas e orações, como que interrompendo o momento introspectivo que se fazia sentir seguem-se exaltações à Santa Madre Igreja e à providencial administração da Ordem de Sanctha Marīa na causa de Deus e no prosseguimento da salvação dos homens.
O sermão termina com o seguinte salmo:
Aleluia. Enaltece um dos inquiridores presentes no Auto-da--Fé, seguindo a leitura do Salmo ao qual reagia a multidão crente e sapiente da totalidade dos escritos sagrados, Louva, ó minha alma, o Senhor!
Torna o inquiridor a palavra e a cada linha de oração retoca a multidão com a linha seguinte…
Hei-de louvar o Senhor enquanto viver,
Hei-de cantar salmos ao meu Deus, enquanto existir.
Não queirais confiar nos poderosos,
Nem nos homens que não podem salvar.
Mal deixam de respirar, voltam ao seu pó,
Nesse mesmo dia acabam os seus pensamentos.
Felizes os que têm por ajuda o Deus de Jacob,
Com a esperança no Senhor seu Deus,
Criador dos céus e da terra,
Do mar e de tudo o que ele encerra!
Ele é eternamente fiel à sua palavra:
A multidão silencia-se por instantes, a solenidade do momento assim o exige, não se sabe por temor a Deus ou se por temor ao cadafalso, neste momento tanto um como outro são a mesma face de um mesmo destino, porém, prossegue o recital, muito bem declamado e narrado atestando perante Ele que o Seu rebanho está bem conduzido na santa graça do divino lavor da Ordem.
Que continue pois então que as gentes devem mostrar a sua graça na sua completa totalidade.
Salva os oprimidos,
Dá pão aos famintos,
Liberta os prisioneiros,
Dá vista ao cego,
Levanta os caídos,
Ama o homem justo,
Protege o estrangeiro,
Sustenta o órfão e a viúva,
Mas desvia os caminhos dos pecadores,
Subitamente numa grande onda de exaltação todos os que naquela praça estavam, mesmo diante dos suspendidos inanimados e dos caídos decapitados, glorificam e exaltam em tom bem audível e harmoniosamente coreografado:
O Senhor reinará eternamente, o teu Deus, ó Sião, de geração em geração. Aleleuia!
Estranhamente recitam este salmo, estes cristãos que, por crer ou sem o querer, comungam de idênticas rezas com os judeus.
Findo o magnífico cerimonial avista-se a entrada de nova leva de sentenciados, é um crescendo de emoções, a Ordem respira de novo face ao folgo novo da multidão, volta o entusiasmo, as cerimónias litúrgicas intercalares acalentam o espírito que nos trouxe aqui, a euforia retorna, o desejo de ver sangrar aguça-se, sem dó nem piedade a multidão está novamente empenhada em prosseguir com o espectáculo, alheios ao sofrimento do novo acto. Já se passaram mais de três horas desde a abertura do ritual mas ninguém parece exausto, tirando, claro, os penados já de si carregados de agruras, sabe-se lá que tormentas se houveram impingidos para debitar a verdade do Senhor aos seus prestáveis servos inquiridores, num Auto-da-Fé, nenhum acto posterior é mais brando que o antecessor, são como grandes finais apoteóticas que se vão seguindo umas atrás dos outras, cada vez mais espectacularmente atrozes que os outras.
Sobem agora pela majestosa escadaria (…)
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